Capítulo VII

Shot013 "O diabo pode citar as Escrituras quando isso lhe convém."
William Shakespeare

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Sir William Delbury levantou-se da cadeira. Falhara a tentativa? Não era possível: ele chegou a sentir a estranha sensação, embora indolor, do projétil lhe atravessando o cérebro.

Imaginou que, com o coice da arma, esta poderia lhe ter escapado às mãos e caído, livrando-o da mira. Virou-se à cadeira para ver onde houvera caído a arma.

A cena que viu, ao mirar a cadeira, fez-lhe recuar assustado: enxergou seu próprio corpo ao chão, a cabeça estourada pelo projétil. A arma jazia a alguma distância do corpo.

Ouviu ruídos e virou: eram algumas pessoas a olharem, espantadas pela janela.

Acompanhou, sem poder intervir, as cenas que se seguiram. Viu seu corpo ser enrolado em uma manta e levado dali. Assistiu jogarem-no o corpo, como lixo, na vala comum do único cemitério da cidade, o Pilgrin’s Cemetery.

Voltou à casa por uns dias. Não sabia o que fazer. Vagou assim, por mais de um ano, em Stratford-on-Avon: por mais que tentasse, não conseguia sair daquele círculo que a cidade se tornara para ele.

Não sentia diferença alguma em seus sentimentos. As mesmas visões do passado o atormentavam.

A morte não fizera a diferença que ele esperava. Ao contrário, seu desespero era maior, pois, quando lhe vinham as lembranças, sentia com mais intensidade os acontecimentos. Vivia-os de novo. Via-se, não mais que de repente, nos locais das tragédias, com a mesma dor lhe lancinando o coração.

Um dia, não mais que de repente, em uma das tentativas de deixar Stratford-on-Avon, conseguiu voltou à Londres.

Vagou pela cidade até Trafalgar Square. Via a cidade de uma forma diferente. Resolveu procurar o pub que freqüentava em vida: o The Cat of the Red Painted Tail Pub.

Ao chegar lá, ao invés da velha placa do gato, viu uma imensa porta de bronze, com caracteres estranhos. Empurrou a porta e esta se abriu, devagar.

Foi como se outra cidade se mostrasse a Sir William. A porta se fechou. Ao virar-se para trás, ele não mais viu a porta: estava no meio de uma imensa praça. Tudo a sua volta era de uma arquitetura totalmente desconhecida, mas que lhe pareceu agradável, embora intrigante.

De repente, sentiu algo lhe queimar o corpo inteiro e soltou um grito de dor. Algo o virava do avesso. Ele sentia cada célula sua ser retorcida e pressionada como se uma enorme tenaz o apertasse o ser. Gritava alucinadamente, desejando desfalecer para não mais sentir.

Tudo parou de repente. Ele suava e resfolegava aturdido. Respirava com dificuldade. Abriu os olhos: estava em uma imensa sala.

Dois homens, bem vestidos e apessoados, se aproximaram:

- Componha-se, William. Ele vai lhe receber agora, antes que você parta para a sua primeira missão.

- Quem me deseja ver? Estou aonde, afinal? No inferno? Não isto não pode ser o inferno. Não é assim que deveria ser o inferno.

- Dirija-se àquela porta e entre, William. Aguarde-o lá.

William abriu a porta e deparou-se com uma enorme biblioteca, infinitamente maior que aquela que possuíra em Delbury Castle. Não podia, na verdade, ver o fim dela em nenhuma das direções que olhasse. Olhou para cima e não via o teto. Sua vista se perdia em prateleiras.

Começou a vagar pela sala, olhando os livros. Não entendia os caracteres, todavia.

Deparou-se com uma espécie de escrivaninha, feita de um cedro nobre e bem talhado. Ao lado da poltrona estava uma bengala da mesma madeira, com o punho cravejado de brilhantes. No espaldar da cadeira, pousada em uma ponta que se sobressaia do mesmo, uma cartola preta.

William Delbury começava a imaginar o diálogo, em morte, que travaria com aquele ser que pouco vira em vida, quando ouviu, a sua costa, uma voz que lhe era inconfundível:

- Seja bem-vindo, William.

Ao virar-se, William viu o mesmo elegante e grave cavalheiro. Impecavelmente vestido. O mesmo olhar sereno e penetrante.

Desta vez, todavia, podia ver-lhe com clareza o rosto e, para sua surpresa, no lugar da expressão marmórea ou da própria falta de expressão, naquele rosto havia um leve e suave sorriso: o suave sorriso do demônio.

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